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Marivaldo dos Santos: O som do Nordeste para o mundo

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Após muita espera, devido aos compromissos do entrevistado em Nova Iorque, conseguimos agendar o bate-papo para uma manhã de primavera, mais precisamente no dia 9 de outubro de 2018, numa de suas estadias em Salvador. Marivaldo me recebeu na sede do Quabales, na rua Aurelino Silva, onde acertava os últimos detalhes para inauguração do espaço que aconteceria dois ou três dias depois. Puxou duas cadeiras, botou uma na frente da outra, sentou-se e dirigiu-se a mim, no linguajar falado pelos surfistas de Amaralina : “Vamos nessa, brother”.  Esse é Marivaldo. O desenrolar da conversa vocês conferem a seguir:

Marivaldo Pereira dos Santos nasceu em Salvador no dia 17 de agosto. Um dos seis filhos de seu Vivaldo Pereira dos Santos e dona Maria de Lourdes. Seu pai trabalhava como mestre de obras, e carpinteiro, além de diretor e fundador da Escola de Samba Diplomata de Amaralina. Sua mãe trabalhava como costureira, foi porta-bandeira do Diplomata e também mãe-de-santo, sendo também conhecida como “Mainha D´Oxum”. Moravam na avenida principal do Nordeste, próximo onde existe hoje a Panificadora Irmãos Andrade.

Sua infância não foi diferente de qualquer garoto morador de bairro popular nos idos dos anos 70 e 80. Jogar futebol, gude, fura-pé, ping-pong, picula, garrafão eram algumas das suas brincadeiras prediletas. “Minha infância foi maravilhosa. Com tudo do bom e do melhor. Naquela época ainda nem existia essa coisa de “favela”. Existia um bairro pobre. Circulávamos por todo os lugares. Levei muita coisa daqui. Não tinha condições financeiras, mas tinha liberdade”, lembra.  Nascido e criado no Nordeste de Amaralina, Marivaldo pode ser considerado o que chamamos de “rato de praia”. A paixão pelo surf, e consequentemente pela praia de Amaralina, deixou ainda mais estreito o seu elo de ligação com o bairro. “Até hoje ainda gosto de surfar. Sou da época do Olimpinho (ex-morador do bairro e campeão brasileiro de longboarder em 1999. Já falecido)”.

Foi também durante a sua infância que a música entrou na sua vida. Seja em casa com o pai, no carnaval ou no São João nos arrastões de samba junino. “Meu pai tocava violão, fazia tipo uma “chula” e eu e meu irmão o acompanhávamos no timbau. Era samba raíz!”, explica. Ainda garoto, Marivaldo acompanhava os pais nos ensaios de carnaval da escola de samba Diplomata de Amaralina : “Meu pai era quem organizava tudo. Minha mãe me contava que a coisa era tão forte aqui, que teve uma ocasião que o pessoal da Mangueira veio desfilar com o pessoal do Diplomata”. A época do samba junino não sai da lembrança do músico: “ Aqui na Bahia tinha essa onda…  Aqui no Nordeste tinha o Unidos do Capim, o Samba Boqueirão, o Samba Negro… Isso influenciou muito em minha trajetória. Me lembro, quando ainda era pivete, um grupo de samba de crianças aqui do bairro. Pegávamos lata de leite Ninho, colocava plástico e apertava com borracha de pneu. Tinha um som de repique! Saímos aqui na pela rua tocando em troca de um queimado ou dinheiro. Era massa! A música já estava comigo”, conta saudoso.

Carreira musical – A crescente onda de violência que começava a se instalar na comunidade entre a metade e final dos anos 80, chamou à atenção da sua irmã Rosana, que já havia saído do bairro e acabou se tornando peça-chave em sua vida: “Minha irmã, que é coreógrafa, foi quem deu o pontapé inicial. Foi fazer universidade e saiu aqui do bairro. Ela viu que as coisas começaram a mudar aqui pelo Nordeste e ficou muito preocupada comigo e meu irmão.  A violência começou a chegar. Meu pai já havia falecido… Ela então sugeriu nos pegar, ainda adolescentes, para morar com ela no Garcia”. Já sob a tutela da irmã, Marivaldo foi levado para estudar no SESC, onde Rosana já dava aula. Nas oficinas de dança e percussão, pôde ver que levava jeito para coisa. “Tive contato com Mestre King (professor de dança, coreógrafo, bailarino e pioneiro da dança afro na Bahia e no Brasil)… Mas, até então, não era ainda o que eu queria. Eu ainda sonhava em ser surfista profissional”, relembra.

Não demorou e pouco depois, o jovem já iniciava sua trajetória fazendo shows folclóricos no Pelourinho, como ele mesmo conta: “Era capoeira, maculêlê, dança de orixás… Eu tocava e dançava”. Foi então que surgiu a oportunidade dele fazer a sua primeira viagem internacional: um convite para compor a equipe que representaria o Brasil no carnaval de Nice na França. A delegação tinha como chefe ninguém menos que Gilberto Gil. “Quando voltei entrei no ballet folclórico e tive a oportunidade de viajar o Brasil inteiro”, conta.

Depois do ballet folclórico, já em 1991, Rosana foi chamada para coreografar uma companhia em Nova Iorque. Na época o jovem artista já fazia as composições para as coreografias dos espetáculos apresentados pela irmã. “Eu tinha o dom da onda”, gaba-se. Foi nesse período, em Nova Iorque, que Marivaldo teve, de fato, sua primeira experiência com o Hip Hop, que posteriormente influenciaria na proposta musical do Quabales, como veremos adiante:  “Eu ainda adolescente, assistia em casa ao Rock in Rio, e ouvi New Kids On The Block e Run DMC fazendo rap… Fiquei pirado com aquilo. Quando fui para os Estados Unidos, na verdade, fui interessado no Hip Hop. Fiquei sabendo que era forte lá. Ainda não tinha pretensão nenhuma de me tornar músico. Tipo assim: era surfista, gostei do Hip Hop, lá tem, eu quero conhecer isso”, explica.

Chegando em “New York City”, Marivaldo encontrou um velho amigo, também baiano, ex-companheiro dos tempos da companhia de balé folclórico e também fã de rap. Logo a antiga parceria começou a ser reeditada e os dois começaram a ensaiar algumas composições. Foi então que entrou em cena um outro baiano: Tuta Aquino, um tarimbado produtor musical que estava nos EUA desde 1981 e responsável por um dos primeiros remix de nada mais, nada menos que Madonna.. “Ele apresentou uma de nossas músicas para Nelson Mota (crítico musical) que gostou pra caramba. Isso em 1993. Na época, Nelson Mota estava para lançar Patrícia Marx, ex-Trem da Alegria, que acabou participando de uma música nossa. A música era tão boa que os caras da gravadora dela queriam que a música fosse lançada primeiro no disco dela e não no nosso”. Para resolver o imbróglio, criaram o MDM6, colocaram a voz de uma outra menina e gravaram o clipe da música, que segundo Marivaldo misturava percussão com hip hop, com um jeito de rimar, na época, muito avançado em nível de Brasil. “Nossa música, foi a mais tocada da MTV junto com uma música de Brown gravada por Marisa Monte . O MDM6 pode-se dizer que foi o primeiro grupo de hip hop na Bahia a ser gravado e ter saído pelo mundo”.  Ainda sobre o MDM6, Marivaldo continua: “O que fazíamos lá em 1993, 1994 os caras começaram a fazer aqui hoje. Viemos para São Paulo gravar o disco. Fizemos ainda um arranjo da música Andar com Fé, de Gilberto Gil. Na hora de lançar, Gil não liberou. A música ficou foda! Tempo depois falando com ele, ele me explicou: Porra, Marivaldo. Naquela época a gente era burro, não entendia as coisas… Por isso, hoje está tudo liberado”, lembra.

E “jogando seu corpo no mundo e andando por todos os cantos”, como diz a canção “Mistério dos Planetas” dos Novos Baianos, Marivaldo seguia ganhando a vida. Sempre com música. Seja em suas apresentações de percussão e dança ou até ganhando  uma grana promovendo rodas de samba duro no Central Park. Mas a ficha ainda não havia caído, o que só viria a acontecer quando acabou convidado a dar uma aula na Universidade de Stanford, na Califórnia. “A Pensei que ia dar aula para os alunos. Ao chegar lá me deparei com um salão só com professores. Ali que me dei conta. Tinha toda cultura, sabia de tudo, todos os ritmos. Então, pensei: Se essa galera está querendo aprender comigo, bicho… Aí resolvi me aprofundar mais com a música e fui estudar”.

STOMP – Completando o que diz a canção dos Novos Baianos, o jovem soteropolitano seguia em Nova Iorque “mostrando como era e sendo como podia”. “E pela lei natural dos encontros”, surgiu o que podemos chamar do grande divisor de águas em sua carreira: a oportunidade de fazer uma audição para integrar ao Stomp, um dos grupos percussivos mais importantes do mundo. “De cara gostei, mas relutei porque não queria viajar. Como eu fazia capoeira, tocava percussão e dançava eu fui, pois o Stomp é tudo isso”, conta. Já no grupo americano, surgiu a oportunidade de tocar com um dos seus ídolos: Sting. “Foi até engraçado: Um brother meu, que já tocava com Michael Jackson, me ligou uma segunda-feira, onde estava de folga sem querer fazer nada. Ele aí disse: Marivaldo tem um show amanhã, mas o ensaio tem que ser hoje. Dá para você fazer?”. Ele não falou o que era. Quando eu aceitei, ele disse: É uma turnê com Sting”. Eu ai, fanzão, fui tocar com o cara. Na primeira apresentação, eu estava sentado, um colega aí me apontou para ele. Eu fiquei engasgado. Ele aí viu meu estado e veio perguntar o meu nome já de sacanagem. Gente finíssima. Toquei, fiz toda a turnê”.

Viajando pelo mundo, conhecendo outras realidades e culturas, Marivaldo se mantinha firme às suas origens. Conservava a sua percepção de “cara de favela”, como costuma dizer.  “Achava que o ingresso do show era muito caro. Sempre falava com os donos do grupo: Bicho, vamos visitar as comunidades lá no Brasil. Trazer o Stomp para perto do povo”. Em uma das passagens do grupo pelo Brasil, mais precisamente no Projeto Morumbi, em São Paulo, o músico teve a ideia de levar o Stomp para se apresentar no Nordeste de Amaralina. ““Vim pra cá, panfletei, trouxe a galera do Stomp e botei um palco na rua. A mesma coisa que fazia com o Stomp quando visitva os bairros, eu fiz. Trouxe toda galera do Stomp aqui para o Nordeste. Tudo isso com meu dinheiro. Todos hospedados la em casa. Rango lá em casa.  Não teve nem caché, mas uma ajuda de custo só para não dizer que veio de graça, pois nos Estados Unidos ninguém fica de bobeira. Fiz o workshop na rua. Naquela época os meninos já ouvindo na rua o “pagodão” e eu tentando mostrar que apesar do pagodão ser massa, também existiam outras coisas”. Estava plantada a semente do que seria o segundo, e talvez maior, divisor de águas da sua carreira: o projeto Quabales.

QUABALES – Projeto socioeducativo cultural que busca promover a fusão entre a percussão baiana e a linguagem do STOMP, o Quabales é a menina dos olhos de Marivaldo. O músico viu no mesmo uma oportunidade de ajudar a juventude do bairro onde nasceu botando em prática tudo o que aprendeu lá fora. O nome, aliás, é uma homenagem a um instrumento musical criado pelo próprio: “Qua”, pelo fato do instrumento ter quatro bocas, e “bales”, por ter o formato de um Timbales. “O Projeto Quabales contempla teoria musical, violão, percussão, break dance, performance percussiva, canto e percussão eletrônica. Mas seu grande diferencial é a produção de instrumentos musicais não convencionais a partir de material reciclado”, explica. O vermelho do Quabales é em homenagem ao seu orixá, Xangô.  Mas engana-se quem pensou que seria fácil. Muito trabalho viria pela frente, inclusive o de superar resistências dentro da própria comunidade.

Desde que fora idealizado, o projeto Quabales já contava com apoios de peso do Stomp, da Brasil Fundation e de Ivete Sangalo que foi apresentada ao Quabales em Nova Iorque, durante um show do Stomp, e que acabou convidada a se tornar madrinha do projeto, como conta Marivado: “Conheci Ivete há alguns anos atrás em Nova Iorque, num show do Stomp. Pedi uma força na divulgação do nosso trabalho e ela disse que no que precisasse dela a gente poderia contar. Chamei  ela então para ser a madrinha do projeto. Tudo para dar credibilidade e para o povo do bairro saber que era uma coisa de verdade”.

Entretanto, assim mesmo Marivaldo ainda conseguia transpor alguns obstáculos impostos por determinados vícios existentes no seu bairro de origem e que acabavam diretamente causando entraves aos seus planos. Como ele mesmo explica: “Tudo isso aqui foi planejado nos mínimos detalhes. A primeira tentativa foi em 2011. Não foi sucesso porque ainda existia uma resistência. Tinha uma minoria que não consegue ver a coisa por um outro lado, sempre pensa somente no que e quanto podia ganhar. Sempre existiu uma questão política muito grande por aqui, seja do cara que é líder comunitário ou de determinado candidato ligado ao bairro. Lembro de uma oportunidade onde organizei uma reunião com as lideranças da comunidade e pude ver que quase todos na verdade não buscavam o melhor para o bairro, mas sim em beneficio próprio. A galera via que eu estando em Nova Iorque e tendo Ivete Sangalo como madrinha, acabavam achando que eu tinha muito dinheiro”. Como um bom surfista em busca da onda ideia, percebeu, então, que precisaria ir pelas “beiradas”.

Sem desanimar, partiu junto com a irmã em busca de um local onde pudesse ensaiar com os garotos. Teve a ideia de ir até a sede da Associação de Moradores, no Sítio Caruano, mais precisamente na rua Mestre Bimba. O local, inclusive, foi construído com a ajuda de seu pai. “Fui lá e reformei o espaço todo que estava sem uso. Botei piso e deixei o lugar todo massa. Começamos então a ensaiar lá. A comunidade então começou a reclamar da zoada, pois o lugar começou a ser usado para outros eventos. Tentava explicar para o povo que percussão de fato é zoada, mas que seria somente duas vezes por semana. Fiquei triste, mas não desanimei”, lembra. Como já tinha planejado que precisava ter uma própria sede, além de não poder estar no meio de briga entre os moradores, Marivaldo foi atrás do imóvel. “Comecei então a andar pelo bairro e procurar um lugar para comprar. Não achava. Começou a bater o desespero.  Quase que cheguei a comprar uma casinha. Foi então que achei esse espaço”.

Achado o local, era hora de pôr em prática tudo aquilo que havia imaginado e planejada lá atrás. Surgiu assim o Centro Cultural Quabales. “O Centro Cultural Quabales é uma escola de educação e formação de cidadãos. Ao longo desses anos do projeto, teve menino do Quabales que se envolveu com coisa errada e voltou e, infelizmente, teve aqueles que saíram e morreram. Por isso, a ideia não é só pegar os meninos e transformar em músicos famosos, não é isso. Esse espaço é para educar.  Cada um desses garotos será inscrito, registrado, tudo direitinho. Estamos com aulas de percussão, percussão performática, aula de violão e aula de voz. Isso é só para começar, mas já temos vários outros projetos”, comemora.

Se por um lado, Marivaldo penava para superar as resistências dentro do Nordeste e conseguir implantar o Centro Cultural, em contrapartida, o grupo Quabales já fazia sua trajetória de sucesso mundo a fora.  Em pouco mais de oito anos desde a sua fundação, o Quabales já alçou vôos que talvez Marivaldo jamais tivesse imaginado. Nem nos seus devaneios mais otimistas. O grupo já se apresentou em vários dos principais festivais de música do mundo, mas um, em especial, acabou sendo a consagração do Quabales: o Rock in Rio 2017. “Fiquei assim, como se tudo parasse. Estava em estado de choque. Eu não estava acreditando… Os meninos se emocionaram ainda mais que eu.  Tocamos num dia de rock´n roll pesado, naquele horário de abertura dos portões, e fomos o que mais encheu. A galera sem entender nada aquela onda de percussão e dança… Fiquei muito feliz. É possível fazer!”, lembra. A apresentação do grupo foi elogiada pela crítica. “Rock in Rio: Banda Quabales e brasileira Iza roubam a cena com o CeeLo Green”, afirmou a manchete do jornal Estado de São Paulo do dia 23 de setembro de 2017.

NORDESTE – Cidadão do mundo, Marivaldo não cansa de declarar amor ao Nordeste de Amaralina, seja lá onde esteja. Não tem vergonha de expor às suas origens. O preconceito é algo reconhecido, jamais desprezado e encarado de frente pelo músico: “Eu ando com todo tipo de pessoa. Desde magnata, dono da Mitsubishi, ao cara da esquina. Brinco com os dois lados. Discriminação é claro que rola. No Brasil ela é mascarada. Quando estou com os magnatas eu brinco com isso: falo da favela e eles levam na brincadeira. Coloco para eles que sou da favela, fui para o mundo e venci. A solução para desfazer isso é a cultura e a educação”.

E, de fato, qual o real significado do Nordeste de Amaralina em sua vida? “Viajamos pelo mundo sempre levando o nome do nosso bairro… O Nordeste para mim é tudo. O Nordeste é vida”.

Tiago Queiroz
Tiago Queiroz
Graduado em Comunicação/Jornalismo, e exerce as funções de Editor e Coordenador de Jornalismo do Portal NORDESTeuSOU

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